domingo, 14 de junho de 2015

RELATÓRIO 58

RELATÓRIO 58

RELATORIA DA REUNIÃO ORDINÁRIA DE 13 DE JUNHO DE 2015: “Quanto menos importante o tema de um filme, menos sua forma acarreta uma dimensão moral. E, desse ponto de vista, a eficácia, a nitidez plástica e a violência lírica, características do estilo de Samuel Fuller, preservam seus filmes do sentimentalismo ou da ambição do filme de tese, chagas do cinema ‘legitimado’”.
O diagnóstico acima é sintetizado por Antoine de Baecque, quando rememora a descoberta empolgada dos petardos fullerianos pelos “jovens turcos” da revista Cahiers du Cinéma. E, não por acaso, tal testemunho aplica-se muito bem à verdadeira experiência litúrgica que foi a sessão conjunta de O BEIJO AMARGO (1964, de Samuel Fuller), que deixou os cecinéfilos absolutamente atordoados com a sua genialidade e caráter subversivo.
Após consentir, extasiado, que esta é a obra-prima máxima da filmografia fulleriana, o mentor Caio Amado conduziu o debate a partir de algumas comparações elementares: segundo ele, o “filme de vingança” A LEI DOS MARGINAIS (1961) seria o antípoda ideal desta obra, em termos morais, enquanto a mesma é quase um complemento discursivo de DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957). Se, no cinema rayniano, que estudamos anteriormente, o que mais interessava ao diretor eram os personagens frágeis, em Samuel Fuller, os personagens fortes se sobressaem. Neste sentido, a interpretação de Constance Towers é pura entrega, puro vigor, um extremo ‘tour de force’...
Complementando a sua participação no ótimo filme anterior PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) – que é alinhavado dialogisticamente na genial explicação do título original (“o beijo nu”) – a personagem de Constance Towers alega que, da outra vez em que experimentara tal ósculo, seu perpetrador fora internado num hospício. O modo como as perversões eróticas e sociais surgem no roteiro deixou todos impressionados. Mauro Luciano, inclusive, foi taxativo: “um filme como estes jamais seria feito hoje em dia!”. Com certeza, as punções incisivas de Samuel Fuller acerca da hipocrisia estadunidense seriam ostensivamente refutadas hodiernamente, sendo a sua condição marginal nas cercanias de Hollywood acentuada não apenas pela ousadia de suas tramas acentuadamente autobiográficas, mas também por sua autoralidade inegável (além de dirigir, ele escrevia e produzia seus filmes), que o obrigava a submeter-se a algumas condições produtivas elementares, como a escolha de elencos pouco conhecidos, ainda que magistralmente competentes.
A pletora funcional de personagens nas tramas fullerianas e a sua insistência emuladora dos processos de investigação jornalística também foram debatidas, bem como a importância do filme no processo de “abertura” em relação à autocensura hollywoodiana que estava em voga na primeira metade da década de 1960, em que o cineasta Otto Preminger (1905-1986) fora outro dos principais contribuintes.
Tergiversando sobre a proposital mistura de gêneros do filme, Wesley Pereira de Castro e os demais surpreenderam-se com o sobejo de ternura advindo de um cineasta tão macho e vinculado à abordagem sem pudores da violência humana. O tom quase melodramático que o enredo assume nalguns aspectos levou alguns dos espectadores às lágrimas, principalmente no surpreendente e emocionante momento em que um coral de crianças deficientes entoa “The Blue Bird of Happiness”. Sem mencionar o espanto e empolgação que tomaram conta da platéia diante da estrondosa seqüência de abertura, que Daniela da Silva descreveu como “extremamente tensa” e que Jadson Teles alinhavou com influências godardianas, principalmente no que tange ao uso intermitente do som e às variações bruscas na trilha musical. Uma obra-prima sob todos os aspectos, portanto!

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