Hipótese sobre Nicholas Ray
Parte 3
A
inexistência de parâmetros seguros de justiça e de um traçado prévio para o
suceder das coisas mergulha tudo na
incerteza, e identidades, papéis, funções, situações, sentimentos, o próprio
desenrolar do tempo se tornam fluidos, não há nada que não possa se reverter,
se opor a si, retroagir ou se perder. Daí, advém duas consequências. Uma, o tão
mencionado sentimento, compartilhado por tantos de seus personagens, de estar
deslocado no mundo. A outra é a ausência de perspectiva histórica. O processo
histórico não deixa de existir, mas ele perde a direção – não se sabe de onde
vem e para onde vai.
Nada disso quer dizer que o
tempo seja um mero suceder sem sentindo. Ray subverte a narrativa tradicional,
mas não a abandona. O passado tem um duplo registro. É de lá que vem tanto a
violência primordial, quanto velhas condenações – uma vida pregressa da qual se
quer afastar, lembranças dolorosas. Mas é também no passado que se encontra
algo vital que se perdeu – uma era ultrapassada, mas que ainda é um marco de
referência, a infância que se deseja reencontrar. No entanto, como se perder é
o mesmo que deixar de existir, a coisa vital só pode reaparecer modificada – na
forma de música, fotografia, velhas revistas, espetáculo que reencena um antigo
episódio. O futuro pode ser resolução ou catástrofe. Acima de tudo, ele envolve
decisões. Uma vida cheia de riscos – como astro de rodeio ou assaltante de
barcos – ou a paz da família e da casa própria? Abandonar ou aderir à
violência? Civilização da estrada de
ferro, do dinamite e das casas de jogos ou cultura
enraizada na terra, na vingança de sangue e na pecuária? Reprimir ou proteger?
Proteger o meio ambiente u degradá-lo? Participar ou não de um empreendimento
arriscado? Matar ou não matar? Persistir no amor ou fugir da ameaça? Ouvir a
voz do deus da vingança ou manter-se nos limites do comportamento sancionado?
Ir embora ou voltar para casa? Até mesmo (e não se trata de nenhuma retórica, a vida de Jesus Cristo é
parte da filmografia de Ray) beber ou não do cálice amargo? A mesma incerteza,
a mesma indecisão exigem a fixação de projetos – igualmente, como no passado,
figurados. Maquetes apresentam o futuro de uma região ou
a fortaleza inimiga a ser penetrada. Bonecos empalhados figuram os inimigos de
carne e osso e coraçõezinhos desenhados indicam onde meter o punhal. No balcão
de um bar, um soldado encena, só usando as mãos, um ataque. Um recorte de
jornal materializa uma ilusão, uma agência de casamentos funciona também como
um oráculo.
O cinema de Nicholas Ray é,
acima de tudo, mise-em-scène. “Eu
odeio o roteiro” – mas nem por isso o roteiro importa menos. Aspectos decisivos
do universo do cineasta já estão presentes nas
histórias e nos diálogos. O comandante de uma missão militar submete-se ao
comando do seu comandado. O roteirista cinematográfico torna-se o personagem de
um outro roteiro – para o qual contribui, mas sobre o qual não tem nenhum
controle – e que o criminaliza injustamente. Aquele que vê e investiga só
consegue ver a si mesmo com a ajuda de uma mulher cega. Uma verdadeira família
só se constitui fora dos laços familiares. O suspeito de um crime torna-se uma
autoridade e, nesta condição, descobre-se que ele é um ex-presidiário. Mata-se
os vivos e salva-se os mortos. Salva-se o inimigo e mata-se o amigo. O defensor
da natureza tem menos a ver com ela que seu predador. O verdadeiro amor é
declarado como se fosse mentira.
Os atores de Ray atuam
duplamente, representam pessoas representando. Como se tentassem reescrever o roteiro
das próprias existências, refazer o que já está feito, trocar os papéis. O
macho violento quer, à força, torna-se feminino, a mulher tornar-se o homem. O
garoto insatisfeito com o pai assume, por um momento, a função paterna; a
garota, carente de amor paterno, assume o papel de mãe, e o outro garoto,
abandonado, encontra uma família – para, logo depois, perdê-la e perder a vida.
Mas a família, lugar de uma possível reconciliação, é também o cenário da
loucura mais destrutiva – cujo portador é, precisamente, aquele que deveria
personalizar a lei razoável, o bom senso e o comedimento, o pai, que, ainda
mais, também é professor - ator, portanto. Ultrapassando aqueles limites que
ele mesmo encarna, ele atua sob a direção do próprio Deus, que exige dele o
desempenho mais radical – o mais cruel dos sacrifícios. Atuar pode ser
reatualizar o passado – astros do rodeio revivem, ritualisticamente, a
conquista do oeste selvagem. Pode ser o cumprimento de uma exigência impossível
– incapaz de estar à altura da missão que lhe foi confiada, o comandante se
desmoraliza diante dos soldados e até do prisioneiro inimigo. Envolve uma luta
complexa. Quem atua? Quem dirige a atuação? Um casal representa os papéis do
assassino e da vítima sob o olhar maldoso do diretor improvisado – mas é este o
objeto da atenção atenta de seus próprios atores – o policial que o investiga e
a esposa psicóloga.
Advogados de defesa e acusação
são atores e diretores. São mestres da retórica, manipuladores dos signos – a
palavra oral, que gera a narrativa, introduzindo o flash back – a palavra
escrita que é citada, como os recortes de jornais – os objetos, como um relógio
ou um chapéu. Até mesmo o próprio corpo é um signo – como a perna que manqueja.
Sabem manipular a piedade, o terror e a vaidade dos jurados – sabem adular e
menosprezar – demonstrar, por exemplo, que o julgamento anterior, o dos órgãos
da imprensa. Sob o interrogatório de um procurador obstinado, o acusado, como
um ator sob pressão, revela a própria interioridade. Caminhar sobre um palco ou
sobre um patíbulo são igualmente atuações. O gangster golpeia
o inimigo sob as vistas de convidados. O condenado passa um pente pelo cabelo e
caminha em direção a uma grande porta que se abre e uma forte iluminação que o
envolve – vai para a cadeira elétrica como se para um show. O olhar fascinado
sobre a bela dançarina é uma grande ameaça, e a beleza é um convite ao ácido
que dissolve. Os curativos que se retiram lentamente de um rosto – talvez
desfigurado – são como as cortinas que se abrem.
Tudo isso existe acima de tudo como mise-em-scène. Há muita ação e muito
movimento nos filmes de Ray, mas a gesticulação dos atores é relativamente
lenta. Pernas, braços e troncos parecem aprisionados nas roupas que vestem como
soldados em seus uniformes. O rosto e as mão se encarregam de absorver,
refletir, refratar e exprimir os impulsos de dentro e de fora. São corpos
contraídos. Um close de Hitchcock nos mostra um rosto apavorado frente a algo
fora de campo que ele vê e nós não vemos. Em Eisenstein, um momento do acúmulo
de forças psíquicas que antecedem a ação a se realizar e o esgotamento destas
forças diante da impossibilidade de agir ou após a ação sofrida. Em
Dreyer, o êxtase – a paixão, em micromovimentos ou petrificada. Em Nicholas Ray,
um rosto crispado. O ator de Hitchcock arregala os olhos, o de Ray os
semicerra. Mas, assim como uma bomba inesperada põe em pânico uma tropa, os
corpos, de repente, tornam-se frenéticos. Tal alternância entre imobilidade e
frenesi, preparada ou abrupta, individual ou de grupo, harmoniosa ou
dissonante, transforma toda encenação em coreografia.
Há igualmente coreografia na
imobilidade, no posicionamento relativo dos corpos entre si e com a câmera. Um
simples gesto pode ter muito sentindo – como segurar a mão de alguém.
Geralmente, as duas pessoas não estão frente a frente, mas lado a lado –
portanto, não se olham e as mãos são o único contato. À lateralidade, se opõe a
posição transversal da câmera – que põe um deles muito próximo e o outro ao
futuro: O quadro é desequilibrado, e isto se adequa à extrema tensão do
movimento e à mesma improbabilidade do gesto – entre dois inimigos, justamente
quando a luta está prestes a começar. Ou quando se contrapõe, como um apoio
inesperado, à sensação de perda, de impotência e à fixação pelo abismo após a
luta e a queda. Dois rostos muito próximos, num close, sempre estão em
desequilíbrio – porque suas alturas são distintas, porque enforcadas em ângulos
inclinados pó porque direcionados em oposição: Um para a direita, outro para a
esquerda, ou um para a frente, outro para o fundo. O resultado é que os
parâmetros visuais de verticalidade, lateralidade e profundidade, que permitem
ao espectador a construção imaginária do espaço em off, são perturbados.
Os cenários extremos e a
arquitetura são os próximos elementos da mise-em-scène. Ora eles se esboçam sem muita determinação, em
fragmentos. A cidade, o campo e as estradas mergulham nas sombras para
fugitivos e perseguidores, para os que não se enquadram, e os espaços iluminados
têm que estar fechados – ainda que, neste enclausuramento, algo possa se abrir
– como uma janela para outro apartamento e, daí, o olhar para outra pessoa e,
consequentemente, o amor – salvo quando o amor é destruído pela suspeita e as
portas se trancam. A composição de uma sala é estranha e incompreensível – até
que se descubra sua adequação à pessoa que mora nela. Outras vezes, tem-se uma
descrição muito precisa de compartimentos e respectivas funções, e tudo parece
muito nítido e correto. Mas as funções se modificam, sombras perturbam a
nitidez e tudo enlouquece. Filmada em Technicolor, a casa de subúrbio, típica
moradia da classe média nos anos conformistas do governo Eisenhower, pode ser o
cenário de um drama cósmico – o novo Abraão ouve a voz de Deus, uma criança
anuncia a era nuclear. Um velho casarão abandonado é o único lar verdadeiro,
pelo menos por uns poucos instantes. Um espetáculo pirotécnico-educativo
prenuncia o fim do mundo e exprime a ausência de mundo dos jovens transviados.
Uma casa de diversões, construída no meio do nada, é como um palco – para um
concerto de piano ou uma tragédia – mas o espetáculo que ela apresenta é o
próprio incêndio. Um deserto, aberto para novos os lados, torna transparentes a
covardia e o vexame.
Entre o cenário envolvente e a
movimentação dos atores dentro deve, as cores preenchem todos os vazios. Roupas
são como almas exteriorizadas. A relação entre pai e filho é casaco-vermelho ou
cinzento. A mulher que, de azul cinzento escuro, quase negro, enfrenta corajosamente
e de revólver em punho um bando ameaçador – quando a ameaça se torna muito mais mortal, veste-se de
branco, como o cordeiro a auto-purificar para o sacrifício. Mas o branco mais
puro pode exprimir uma opção radical e intransigente pelo mal.
A
introdução da cor , sua generalização nos anos 1950, fortaleceram a chamada
impressão de realidade, componente essencial da experiência de ver um filme.
Desta maneira, ela reforça a crença do espectador naquilo que vê – e esta
crença é um efeito buscado pela cinematografia clássica que, neste sentido,
pode ser chamada de realista. Mas este
mesmo realismo é passível de ser comprometido pela cor que, quando excessiva,
acaba por retirar a familiaridade que temos com as coisas. Mesmo que tal
contraefeito seja, com certos cuidados técnicos, relativamente anulado, tal não
acontece muitas vezes em Ray, onde a cor, exacerbada, remete objetos, pessoas e
eventos para além do ser e da percepção corriqueiros. Neste sentido, o cineasta
aproxima-se do musical, cuja eficácia
depende precisamente da suspensão momentânea e bem dosada daquele mesmo
realismo – ainda que não tenha realizado nenhum filme do gênero – e sem
compartilhar do otimismo feliz que lhe é característico. A cor excessiva, em
Ray, acentua o drama e seus correspondentes afetivos, o medo, a angústia, o
sentimento de vazio e fugacidade de tudo. É também através da cor que o mais
tradicional dos gêneros – cujo tema, a fronteira, é o mito fundador da
nacionalidade norte-americana – sofre uma profunda torsão. Mas esta não é
cínica ou realista – opção de outros importantes cineastas que fizeram uma
grande renovação do western na década de 1950. Ray vai num sentido oposto,
acentuando o que é irreal no gênero, tornando-o teatral, onírico,
aproximando-se do mito – mas para virá-lo pelo avesso, não para reiterá-lo
estilizando-o, como Shane, de Georges
Stevens. O sonho da coletividade autodeterminada em harmonia com o indivíduo
livre se transforma num pesadelo onde a os que desejam a liberdade são
linchados por uma horda de terno e gravata cheia de ódio e intolerância.
O enquadramento ainda é mise-em-scène ou já é outra coisa? Sem
fazer maiores considerações sobre o tema, é suficiente aqui lembrar que o ponto
de vista ótico já é de extrema importância no teatro. Nicholas Ray demonstrou
um grande domínio de todos os formatos que utilizou, e foi um mestre do Cinemascope,
uma das mais radicais modalidades de widescreen – o 1 por 2,35 – que não foi
bem apreciada por todos os cineastas – para Fritz Lang, só prestava para filmar
cobras e enterros. Este tipo de quadro, onde a horizontalidade é muito acentuada,
acarreta muitos problemas de equilíbrio, mas também abre muitas possibilidades,
que outros, como Kurosawa ou Preminger, souberam aproveitar muito bem. Ray está
entre estes. Assim, o cotidiano da família tradicional de subúrbio, sua vida corriqueira
e sua moralidade provinciana se adequam ao formato horizontal – que,
inversamente, é o mais apropriado para ressaltar o grande e radical
desequilíbrio quando ele acontece.
Daí já se entra num novo domínio, o da
montagem, que talvez não seja o forte de Ray. Pelo menos é esta a opinião de de
grandes admiradores do cineasta, como François Truffaut. Realmente, parece que
não dá muita importância aos momentos de iniciar ou terminar um plano, ou os
subordina a outros imperativos. Às vezes ele corta antes que a ação se complete,
começa depois que ela já se iniciou, as
emendas nem sempre estão muito corretas e por aí vai. Resta saber se estes são
necessariamente defeitos. A ausência de ênfase de algo que, no entanto, é muito
importante – um objeto, um acontecimento, uma reação, uma interferência - é marcante no estilo de Ray, ainda que pouco
perceptível – e existe precisamente por causa disso. Está ligada à impressão de
inacabamento de muitos de seus filmes. Não é à toa que, na contramão de quase
todo mundo, Godard elogia a montagem de Ray. E Godard não é apenas um dos
grandes admiradores do cineasta e o maior dos seus discípulos – e Ray, muito
possivelmente, um dos maiores de seus mestres, a principal inspiração, ao menos
dos seus primeiros filmes – mas, seguramente, um dos principais inventores da
montagem.