segunda-feira, 6 de julho de 2015

Hipótese sobre Nicholas Ray



Parte 3

                A inexistência de parâmetros seguros de justiça e de um traçado prévio para o suceder  das coisas mergulha tudo na incerteza, e identidades, papéis, funções, situações, sentimentos, o próprio desenrolar do tempo se tornam fluidos, não há nada que não possa se reverter, se opor a si, retroagir ou se perder. Daí, advém duas consequências. Uma, o tão mencionado sentimento, compartilhado por tantos de seus personagens, de estar deslocado no mundo. A outra é a ausência de perspectiva histórica. O processo histórico não deixa de existir, mas ele perde a direção – não se sabe de onde vem e para onde vai.
                Nada disso quer dizer que o tempo seja um mero suceder sem sentindo. Ray subverte a narrativa tradicional, mas não a abandona. O passado tem um duplo registro. É de lá que vem tanto a violência primordial, quanto velhas condenações – uma vida pregressa da qual se quer afastar, lembranças dolorosas. Mas é também no passado que se encontra algo vital que se perdeu – uma era ultrapassada, mas que ainda é um marco de referência, a infância que se deseja reencontrar. No entanto, como se perder é o mesmo que deixar de existir, a coisa vital só pode reaparecer modificada – na forma de música, fotografia, velhas revistas, espetáculo que reencena um antigo episódio. O futuro pode ser resolução ou catástrofe. Acima de tudo, ele envolve decisões. Uma vida cheia de riscos – como astro de rodeio ou assaltante de barcos – ou a paz da família e da casa própria? Abandonar ou aderir à violência?  Civilização da estrada de ferro, do dinamite  e das casas de jogos ou cultura enraizada na terra, na vingança de sangue e na pecuária? Reprimir ou proteger? Proteger o meio ambiente u degradá-lo? Participar ou não de um empreendimento arriscado? Matar ou não matar? Persistir no amor ou fugir da ameaça? Ouvir a voz do deus da vingança ou manter-se nos limites do comportamento sancionado? Ir embora ou voltar para casa? Até mesmo (e não se trata de nenhuma retórica, a vida de Jesus Cristo é parte da filmografia de Ray) beber ou não do cálice amargo? A mesma incerteza, a mesma indecisão exigem a fixação de projetos – igualmente, como no passado, figurados. Maquetes apresentam o futuro de uma região ou a fortaleza inimiga a ser penetrada. Bonecos empalhados figuram os inimigos de carne e osso e coraçõezinhos desenhados indicam onde meter o punhal. No balcão de um bar, um soldado encena, só usando as mãos, um ataque. Um recorte de jornal materializa uma ilusão, uma agência de casamentos funciona também como um oráculo.
                O cinema de Nicholas Ray é, acima de tudo, mise-em-scène. “Eu odeio o roteiro” – mas nem por isso o roteiro importa menos. Aspectos decisivos do universo do cineasta já estão presentes nas histórias e nos diálogos. O comandante de uma missão militar submete-se ao comando do seu comandado. O roteirista cinematográfico torna-se o personagem de um outro roteiro – para o qual contribui, mas sobre o qual não tem nenhum controle – e que o criminaliza injustamente. Aquele que vê e investiga só consegue ver a si mesmo com a ajuda de uma mulher cega. Uma verdadeira família só se constitui fora dos laços familiares. O suspeito de um crime torna-se uma autoridade e, nesta condição, descobre-se que ele é um ex-presidiário. Mata-se os vivos e salva-se os mortos. Salva-se o inimigo e mata-se o amigo. O defensor da natureza tem menos a ver com ela que seu predador. O verdadeiro amor é declarado como se fosse mentira.
                Os atores de Ray atuam duplamente, representam pessoas representando. Como se tentassem reescrever o roteiro das próprias existências, refazer o que já está feito, trocar os papéis. O macho violento quer, à força, torna-se feminino, a mulher tornar-se o homem. O garoto insatisfeito com o pai assume, por um momento, a função paterna; a garota, carente de amor paterno, assume o papel de mãe, e o outro garoto, abandonado, encontra uma família – para, logo depois, perdê-la e perder a vida. Mas a família, lugar de uma possível reconciliação, é também o cenário da loucura mais destrutiva – cujo portador é, precisamente, aquele que deveria personalizar a lei razoável, o bom senso e o comedimento, o pai, que, ainda mais, também é professor - ator, portanto. Ultrapassando aqueles limites que ele mesmo encarna, ele atua sob a direção do próprio Deus, que exige dele o desempenho mais radical – o mais cruel dos sacrifícios. Atuar pode ser reatualizar o passado – astros do rodeio revivem, ritualisticamente, a conquista do oeste selvagem. Pode ser o cumprimento de uma exigência impossível – incapaz de estar à altura da missão que lhe foi confiada, o comandante se desmoraliza diante dos soldados e até do prisioneiro inimigo. Envolve uma luta complexa. Quem atua? Quem dirige a atuação? Um casal representa os papéis do assassino e da vítima sob o olhar maldoso do diretor improvisado – mas é este o objeto da atenção atenta de seus próprios atores – o policial que o investiga e a esposa psicóloga.
                Advogados de defesa e acusação são atores e diretores. São mestres da retórica, manipuladores dos signos – a palavra oral, que gera a narrativa, introduzindo o flash back – a palavra escrita que é citada, como os recortes de jornais – os objetos, como um relógio ou um chapéu. Até mesmo o próprio corpo é um signo – como a perna que manqueja. Sabem manipular a piedade, o terror e a vaidade dos jurados – sabem adular e menosprezar – demonstrar, por exemplo, que o julgamento anterior, o dos órgãos da imprensa. Sob o interrogatório de um procurador obstinado, o acusado, como um ator sob pressão, revela a própria interioridade. Caminhar sobre um palco ou sobre um patíbulo são igualmente atuações. O gangster golpeia o inimigo sob as vistas de convidados. O condenado passa um pente pelo cabelo e caminha em direção a uma grande porta que se abre e uma forte iluminação que o envolve – vai para a cadeira elétrica como se para um show. O olhar fascinado sobre a bela dançarina é uma grande ameaça, e a beleza é um convite ao ácido que dissolve. Os curativos que se retiram lentamente de um rosto – talvez desfigurado – são como as cortinas que se abrem.
Tudo isso existe acima de tudo como mise-em-scène. Há muita ação e muito movimento nos filmes de Ray, mas a gesticulação dos atores é relativamente lenta. Pernas, braços e troncos parecem aprisionados nas roupas que vestem como soldados em seus uniformes. O rosto e as mão se encarregam de absorver, refletir, refratar e exprimir os impulsos de dentro e de fora. São corpos contraídos. Um close de Hitchcock nos mostra um rosto apavorado frente a algo fora de campo que ele vê e nós não vemos. Em Eisenstein, um momento do acúmulo de forças psíquicas que antecedem a ação a se realizar e o esgotamento destas forças diante da impossibilidade de agir ou  após a ação sofrida. Em Dreyer, o êxtase – a paixão, em micromovimentos ou petrificada. Em Nicholas Ray, um rosto crispado. O ator de Hitchcock arregala os olhos, o de Ray os semicerra. Mas, assim como uma bomba inesperada põe em pânico uma tropa, os corpos, de repente, tornam-se frenéticos. Tal alternância entre imobilidade e frenesi, preparada ou abrupta, individual ou de grupo, harmoniosa ou dissonante, transforma toda encenação em coreografia. 
Há igualmente coreografia na imobilidade, no posicionamento relativo dos corpos entre si e com a câmera. Um simples gesto pode ter muito sentindo – como segurar a mão de alguém. Geralmente, as duas pessoas não estão frente a frente, mas lado a lado – portanto, não se olham e as mãos são o único contato. À lateralidade, se opõe a posição transversal da câmera – que põe um deles muito próximo e o outro ao futuro: O quadro é desequilibrado, e isto se adequa à extrema tensão do movimento e à mesma improbabilidade do gesto – entre dois inimigos, justamente quando a luta está prestes a começar. Ou quando se contrapõe, como um apoio inesperado, à sensação de perda, de impotência e à fixação pelo abismo após a luta e a queda. Dois rostos muito próximos, num close, sempre estão em desequilíbrio – porque suas alturas são distintas, porque enforcadas em ângulos inclinados pó porque direcionados em oposição: Um para a direita, outro para a esquerda, ou um para a frente, outro para o fundo. O resultado é que os parâmetros visuais de verticalidade, lateralidade e profundidade, que permitem ao espectador a construção imaginária do espaço em off, são perturbados.
                Os cenários extremos e a arquitetura são os próximos elementos da mise-em-scène. Ora eles se esboçam sem muita determinação, em fragmentos. A cidade, o campo e as estradas mergulham nas sombras para fugitivos e perseguidores, para os que não se enquadram, e os espaços iluminados têm que estar fechados – ainda que, neste enclausuramento, algo possa se abrir – como uma janela para outro apartamento e, daí, o olhar para outra pessoa e, consequentemente, o amor – salvo quando o amor é destruído pela suspeita e as portas se trancam. A composição de uma sala é estranha e incompreensível – até que se descubra sua adequação à pessoa que mora nela. Outras vezes, tem-se uma descrição muito precisa de compartimentos e respectivas funções, e tudo parece muito nítido e correto. Mas as funções se modificam, sombras perturbam a nitidez e tudo enlouquece. Filmada em Technicolor, a casa de subúrbio, típica moradia da classe média nos anos conformistas do governo Eisenhower, pode ser o cenário de um drama cósmico – o novo Abraão ouve a voz de Deus, uma criança anuncia a era nuclear. Um velho casarão abandonado é o único lar verdadeiro, pelo menos por uns poucos instantes. Um espetáculo pirotécnico-educativo prenuncia o fim do mundo e exprime a ausência de mundo dos jovens transviados. Uma casa de diversões, construída no meio do nada, é como um palco – para um concerto de piano ou uma tragédia – mas o espetáculo que ela apresenta é o próprio incêndio. Um deserto, aberto para novos os lados, torna transparentes a covardia e o vexame.
                Entre o cenário envolvente e a movimentação dos atores dentro deve, as cores preenchem todos os vazios. Roupas são como almas exteriorizadas. A relação entre pai e filho é casaco-vermelho ou cinzento. A mulher que, de azul cinzento escuro, quase negro, enfrenta corajosamente e de revólver em punho um bando ameaçador – quando a  ameaça se torna muito mais mortal, veste-se de branco, como o cordeiro a auto-purificar para o sacrifício. Mas o branco mais puro pode exprimir uma opção radical e intransigente pelo mal.
        A introdução da cor , sua generalização nos anos 1950, fortaleceram a chamada impressão de realidade, componente essencial da experiência de ver um filme. Desta maneira, ela reforça a crença do espectador naquilo que vê – e esta crença é um efeito buscado pela cinematografia clássica que, neste sentido, pode ser chamada de realista.  Mas este mesmo realismo é passível de ser comprometido pela cor que, quando excessiva, acaba por retirar a familiaridade que temos com as coisas. Mesmo que tal contraefeito seja, com certos cuidados técnicos, relativamente anulado, tal não acontece muitas vezes em Ray, onde a cor, exacerbada, remete objetos, pessoas e eventos para além do ser e da percepção corriqueiros. Neste sentido, o cineasta aproxima-se do musical,  cuja eficácia depende precisamente da suspensão momentânea e bem dosada daquele mesmo realismo – ainda que não tenha realizado nenhum filme do gênero – e sem compartilhar do otimismo feliz que lhe é característico. A cor excessiva, em Ray, acentua o drama e seus correspondentes afetivos, o medo, a angústia, o sentimento de vazio e fugacidade de tudo. É também através da cor que o mais tradicional dos gêneros – cujo tema, a fronteira, é o mito fundador da nacionalidade norte-americana – sofre uma profunda torsão. Mas esta não é cínica ou realista – opção de outros importantes cineastas que fizeram uma grande renovação do western na década de 1950. Ray vai num sentido oposto, acentuando o que é irreal no gênero, tornando-o teatral, onírico, aproximando-se do mito – mas para virá-lo pelo avesso, não para reiterá-lo estilizando-o, como Shane, de Georges Stevens. O sonho da coletividade autodeterminada em harmonia com o indivíduo livre se transforma num pesadelo onde a os que desejam a liberdade são linchados por uma horda de terno e gravata cheia de ódio e intolerância.
            
    O enquadramento ainda é mise-em-scène ou já é outra coisa? Sem fazer maiores considerações sobre o tema, é suficiente aqui lembrar que o ponto de vista ótico já é de extrema importância no teatro. Nicholas Ray demonstrou um grande domínio de todos os formatos que utilizou, e foi um mestre do Cinemascope, uma das mais radicais modalidades de widescreen – o 1 por 2,35 – que não foi bem apreciada por todos os cineastas – para Fritz Lang, só prestava para filmar cobras e enterros. Este tipo de quadro, onde a horizontalidade é muito acentuada, acarreta muitos problemas de equilíbrio, mas também abre muitas possibilidades, que outros, como Kurosawa ou Preminger, souberam aproveitar muito bem. Ray está entre estes. Assim, o cotidiano da família tradicional de subúrbio, sua vida corriqueira e sua moralidade provinciana se adequam ao formato horizontal – que, inversamente, é o mais apropriado para ressaltar o grande e radical desequilíbrio quando ele acontece.  
     Daí já se entra num novo domínio, o da montagem, que talvez não seja o forte de Ray. Pelo menos é esta a opinião de de grandes admiradores do cineasta, como François Truffaut. Realmente, parece que não dá muita importância aos momentos de iniciar ou terminar um plano, ou os subordina a outros imperativos. Às vezes ele corta antes que a ação se complete,  começa depois que ela já se iniciou, as emendas nem sempre estão muito corretas e por aí vai. Resta saber se estes são necessariamente defeitos. A ausência de ênfase de algo que, no entanto, é muito importante – um objeto, um acontecimento, uma reação, uma interferência -  é marcante no estilo de Ray, ainda que pouco perceptível – e existe precisamente por causa disso. Está ligada à impressão de inacabamento de muitos de seus filmes. Não é à toa que, na contramão de quase todo mundo, Godard elogia a montagem de Ray. E Godard não é apenas um dos grandes admiradores do cineasta e o maior dos seus discípulos – e Ray, muito possivelmente, um dos maiores de seus mestres, a principal inspiração, ao menos dos seus primeiros filmes – mas, seguramente, um dos principais inventores da montagem.            




sexta-feira, 26 de junho de 2015

Um texto para Nick



Um texto para Nick
 
“Meus heróis não são mais neuróticos que o público. A menos que você possa sentir que nosso herói é tão ferrado quanto nós e que cometeríamos os mesmos erros que ele, não pode haver satisfação quando ele realiza de fato um ato heroico. Porque então você poderá dizer: ‘diabos, eu poderia ter feito isso também’. E essa é a obrigação do realizador de filmes ou do trabalhador do teatro: dar o mais elevado senso de experiência às pessoas que pagam para ir ver o seu trabalho. ”
- Nicholas Ray




I - “Esse garoto e essa garota nunca foram realmente introduzidos ao mundo em que vivemos. Essa é sua estória...”
Com essas palavras (e um belo pano no qual reconhecemos o apaixonado casal de protagonistas), se inicia AMARGA ESPERANÇA (“They Live by Night”, 1948). Nicholas Ray passaria toda sua carreira (poderia se dizer, toda a sua vida) debatendo-se com todas as suas forças contra o peso de um mundo sempre disposto a sacrificar o indivíduo. A estilização extrema (sempre composta com maestria) não serve de obstáculo para que esse conflito básico, tão inerente a existência de qualquer pessoa que trave contato com a sociedade. Muito pelo contrário: a opacidade dos mundos transpostos (muitas vezes delirantes ou oníricos, sempre em franca incompatibilidade com seus protagonistas desesperados) faz da surrealidade uma janela para a mais pura identificação – não importa quão febril e selvagem, vemos a nós mesmos e o mundo presente estampado em suas tintas fortes.
Nesse seu primeiro filme é impossível não se surpreender com a força com que são delineadas as características mais autorais de Ray, que ganhariam diversas e geniais ramificações ao longo de sua filmografia: a crítica institucional que tem como alvo tanto a marginalização social quanto o processamento impessoal e incompatível da geração mais jovem (especialmente contundente aqui, visto que uma das figuras de autoridade policial declara “é provavelmente culpa nossa” ao se referir ao ciclo de delinquência juvenil que arremessa Bowie na vida de criminoso); o sujeito que sempre necessita ser afastado (ou afastar-se por vontade própria) da sociedade ou do grupo social o qual pertence (os velhos comparsas são ameaça tão grande quanto os policiais) para poder viver como almejam suas aspirações individuais; a violência psicológica inevitável aos personagens que vivem nesta queda de braço entre individualidade e pressões contraditórias da coletividade (e se todos os eventos de violência física acontecem fora do quadro, não somos poupados da virulência furiosa de personagens em colisão constante); a presença de “heróis” masculinos instáveis, imaturos e violentos que encontram redenção por intermédio de uma personagem feminina mais forte e centrada, ainda que igualmente marginal (na devoção terna para um com o outro, o casal rompe conscientemente com o resto da coletividade ou grupo social responsável pelo conflito recorrente); e por fim o sacrifício do marginal, bode expiatório por excelência de um sistema eternamente em crise, sistema esse assombrado ao mesmo tempo pela consciência (sufocada a todo custo) de seu colapso e por uma ignorância infindável a qualquer sutileza individual.
Notável, também é a desenvoltura que Ray apresenta enquanto encenador: as atuações não são menos que magnéticas (periga ser a melhor performance da carreira de Farley Granger e também de Cathy O’Donnel, com desempenhos fortíssimos do resto do elenco). Cada ator em cena se mostra perfeitamente em sintonia com o projeto de Ray: os amantes são como anjos caídos, esgueirando-se pelas noites melancólicas de uma América falida num rumo anunciado para a tragédia (afinal, o sacrifício sempre é cobrado). Sua vulnerabilidade e inocência nos enternece, enquanto cabe aos demais antagonistas (figuras tristes, frustradas – adultas) transparecer como a malícia e violência do mundo surgiu algum dia dessa mesma semente.

II – “Eu vivi algumas semanas enquanto você me amou...”
Servindo como radiografia em preto e branco tanto de seu diretor quanto de seu astro, NO SILÊNCIO DA NOITE (“In a Lonely Place”, 1950) é possivelmente um dos filmes mais amargos já feitos. Dix Steele, o roteirista desiludido personificado por Humphrey Bogart é tão mais digno de interesse quanto maior o seu lado sombrio: é de seu cinismo (ainda que esconda um romantismo insuspeito) que surge o senso de ironia ferino e perspicaz que lhe garante ideias brilhantes para seus roteiros, mas também lhe deixa em maus lençóis com a polícia (e a sociedade em geral). É de sua impetuosidade explosiva que surge seu charme, mas também os arroubos de violência que o fazem cair em desgraça (e no alcoolismo). Sua dupla salvação surge na forma da atraente vizinha Laurel (Gloria Grahame – em seu maior papel, ironicamente vivendo a deterioração de seu casamento com Ray nos bastidores). Por atração mútua, Laurel livra Dix de uma acusação de homicídio (cuja suspeita criminal se deve principalmente ao humor sombrio do roteirista). Inevitavelmente, a paixão surge e rapidamente as melhores virtudes e piores defeitos de Steele começam a aflorar. Seu cinismo se abranda e sua criatividade ganha asas, mas a suspeita imposta por relações sociais mesquinhas e incompetência institucional (sempre ela) dilatam de tal forma a tensão entre o casal que nada do relacionamento sobra quando a verdade sobre a acusação de assassinato finalmente vem à tona. Steele é inocente, mas o cerco dos demais o torna perfeitamente capaz de cometer o crime contra sua própria amada e é a consciência disso que o empurra no abismo, subtendido pelas palavras e evidenciado pelas sombras noturnas (num dos mais terrivelmente belos trabalhos em composição e fotografia do gênero noir). Truffaut costumava chamar Nicholas Ray de “o poeta do anoitecer”. Diante de obras como AMARGA ESPERANÇA e NO SILÊNCIO DA NOITE, não fica muito difícil de entender o porquê.

No entanto, temos o outro lado da moeda em CINZAS QUE QUEIMAM (“On Dangerous Ground”, 1952), que de várias formas é o contraponto perfeito do pessimismo de In a Lonely Place. O filme começa em perspectiva ainda mais sombria: Jim Wilson (Robert Ryan) é um policial cuja violência empregada no encalço dos criminosos é tão severa que costuma incapacitar o processo acusatório antes mesmo que eles cheguem a um tribunal. Vemos um homem amargurado, que se recusa a deixar qualquer leveza entrar em sua vida, imerso no “lixo” de sordidez pelo qual ele se queixa de estar sempre envolto. Sua única resposta a qualquer ação que viole seu rígido código moral é a repressão imediata de um cão raivoso.  Sua personalidade vulcânica só é desafiada pela serenidade de Mary (Ida Lupino), irmã do suspeito que Jim é incumbido de capturar. Seguido pelo violento pai da vítima (Ward Bond), que deseja ele mesmo vingar-se do suspeito com sua espingarda em punho, Jim chega até o remoto chalé de Mary sem saber ainda que ela é irmã do assassino foragido e que é cega. Com sua gentileza e serenidade, Mary consegue convencer o detetive a proteger seu irmão, um jovem deficiente mental incapaz de responder por seus atos. Diante disso, Jim é ainda obrigado a encarar a versão mais extrema de sua própria violência na figura do pai da vítima, o espírito encarnado do linchador fanático (não por acaso, o linchamento é tema constante na obra de Ray). Segue-se uma desesperada perseguição, na qual ironicamente o retorno ao lar assume a forma de tragédia (sacrifício). No entanto, o bem feito também não pode ser desfeito: o contato com Mary modifica para sempre Jim, que ganha perspectiva e controle emocional sem precedentes ao retornar a sua cidade e a seu trabalho. Para além dos momentos antológicos (a cena em que “vemos” a chama de uma vela pela perspectiva de uma mulher cega é algo inacreditável), da forma como o filme vai se transformando por completo em termos de ritmo e atmosfera a cada um de seus atos (outra característica autoral de Nicholas Ray – a cada novo ambiente é como se adentrássemos em um novo filme) a progressão do denso pessimismo das sequências iniciais à epifania de iluminação que se inicia com a chegada da personagem de Ida Lupino é de uma beleza lancinante, que marca não apenas uma nova clareza do olhar do endurecido (e ao final, terno) policial vivido por Robert Ryan, mas também a nossa, enquanto audiência. Somos todos testemunhas. É um filme sobre a luz.

III – “Eu mesmo sou um estrangeiro aqui...”
Tudo e mais um pouco já foi dito sobre essa erupção de paixão cinematográfica chamada JOHNNY GUITAR (1954). O uso delirante e fortíssimo da cor; a desconstrução infinitamente genial do gênero (tanto do western como dos desdobramentos sociais e sexuais de gênero); a pulsão amorosa que nutre os protagonistas (e boa parte dos demais personagens que os circundam); a perspicaz e coerente alegoria da era McCarty numa época em que a mesma se encontrava em plena ebulição persecutória; a poesia arrebatadora dos diálogos, dos duelos e da cenografia barroca.  Johnny Guitar pode muito bem ser considerada a obra-síntese de seu diretor, visto que contém todos os seus melhores arroubos de genialidade autoral até então e antecipa a maioria dos seguintes. Claro, tal afirmação pode ter um caráter apenas parcial e limitado, visto que a filmografia de Ray conta com um número impressionante de obras-primas únicas, cada qual versando sobre aspectos muito específicos (e mesmo seus filmes menores ou sabotados por arbitrariedades dos estúdios possuem lampejos de mestre). Mas não é absurdo afirmar que neste filme temos um autor de cinema no máximo de suas capacidades. Temos o arquétipo do marginal relutante, o próprio Johnny (Sterling Hayden) que quer apenas deixar para trás o passado de violência e reencontrar sua amada. Temos a impetuosa Vienna (Joan Crowford), para todos os efeitos, real protagonista e centro (moral, narrativo, ideológico e relacionamental) da trama, com seu projeto de construção utópica de uma comunidade menos presa, onde as coisas sejam feitas à sua maneira. Temos sua figura antagônica, Emma (Mercedes McCambridge) que se ressente por encontrar em Vienna uma rival no domínio econômico (e sobre os homens da cidade) que ousa desafiar os preceitos moralistas que ele segue de forma hipócrita (não por acaso, ela sabe como ninguém manipular a turba e os interesses escusos, tanto políticos quanto monetários que levam à delação). Temos Dancin’ Kid (Scott Braddy) e Turquey (Bem Cooper) os desajustados que cortejam o crime de forma juvenil e inconsequente, figuras muito semelhantes ao que o próprio Johnny provavelmente foi no passado. Temos Old Tom (John Carrandine) e Corey (Royal Dano), figuras gêmeas de devoção amorosa platônica, ainda que em ordenamentos de grupo distintos (inclusive, cabe a Tom uma das sequências mais comoventes, onde ele reconhece e transcende sua própria invisibilidade enquanto “homem comum”, num monólogo que resume pungentemente o conceito de herói defendido por Ray). No entretanto, ao contrário da maioria das obras raynianas, há uma utopia com engrenagens concretas: por poderosa e rica que seja a demoníaca Emma, ela tem nos planos empreendedores de Vienna uma ameaça que extrapola os interesses específicos: trata-se de um rompimento com os valores mais caros ao conservadorismo capitalista e puritano que tem voz altissonante nos EUA: a “puta de estrada” tem um projeto de cidade, uma conduta ética de respeito aos trabalhadores impecável e é a detentora absoluta tanto do entretenimento quanto da tolerância (pacifista, inclusive) aos homens perdidos que povoam a cidade (mal vemos que cidade é esta, tamanha é sua defasagem no tempo – os cenários dominantes são o Vienna’s e o covil do bando de Kid). Fatalmente, as mandíbulas da comunidade moribunda se cerrarão sobre essa utopia (é absolutamente impossível esquecer o plano em que chamas infernais se erguem sobre o saloon, especialmente sendo ele posterior a resplandescência com a qual Vienna tocava seu piano com seu vestido branco, senhora de si mesma). Resta a heroína aquela que é afinal a mais desejada das aspirações, no cinema de Ray: sua paixão: o imperfeito e terno Johnny Guitar (justificando, inclusive o título, que muitos apontam enquanto irônico ou concessivo às concessões do western). Nada mais coerente: para os protagonistas sem lar de Nicholas Ray, a paixão é sempre o centro de todas as coisas.

Victor Cardozo Barbosa


RELATÓRIO 59

Relatório 59

RELATORIA DA REUNIÃO ORDINÁRIA DE 20 DE JUNHO DE 2015: “As biologias fantásticas, que unem categorias culturais diferentes e opostas, podem ser construídas por intermédio de fissão e fusão, ao passo que o potencial de horror de seres já antes repugnantes e fóbicos pode ser acentuado pela magnificação e pela massificação. Essas são estruturas primárias para a construção de criaturas horríficas. Essas criaturas pertencem, em primeiro lugar, ao que poderia ser entendido como as biologias dos monstros de horror. No entanto, uma outra estrutura, não ligada essencialmente à biologia dessas criaturas, merece discussão num exame da apresentação dos seres horrendos, pois embora não seja uma questão de biologia, é uma estratégia recorrente na representação de monstros. Essa estratégia pode ser chamada de metonímia do horror”.
Tal explicação é encontrada em “A Natureza do Horror”, primeiro capítulo do obrigatório “A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração”, livro de Noël Carroll que foi mencionado entusiasticamente no debate que se seguiu à exibição de O CÃO BRANCO (1981), injustiçado filme de Samuel Fuller que, ainda não seja tão excelente quanto obras anteriores, é, sem dúvida, um filme muitíssimo coerente não apenas com seu ‘modus operandi’ marginal (ainda que negociado com as concessões e/ou convenções de estúdio – no caso, a Paramount) e absolutamente coadunado às suas obsessões discursivas e autobiográficas.
As menções à obra literária supracitada partiram de Mauro Luciano e Wesley Pereira de Castro, quando estes elucubravam sobre as características de gêneros tradicionais hollywoodianos, que o diretor Samuel Fuller desmantela genialmente em suas obras, justamente ao amalgamar várias delas. Afinal de contas, O CÃO BRANCO é tanto um filme de suspense quanto um melodrama quanto “um filme de bichinho” (ainda que em nível extremo) quanto um filme de horror, em que a mazela monstruosa é uma das maiores chagas da sociedade, o racismo, já abordado violentamente em produções anteriores do cineasta.
Antes da sessão, Wesley presumia que seria obrigado a defender o filme de comparações possivelmente demeritórias com obras-primas anteriores, mas não foi necessário: o filme funcionou muitíssimo bem entre os presentes à sessão, comovendo-os e assombrando-os em iguais medidas. O roteiro, co-escrito por Curtis Hanson e o próprio diretor, surpreende pela pujança discursiva, ainda que o filme possua irregularidades actanciais, devidamente descortinadas logo no início do debate.
A postura de ‘designer’ do diretor – extensão adjetiva esta que foi cunhada pelo mentor Caio Amado – foi perscrutada tanto em seus aspectos visuais quanto sonoros, visto que o cineasta demonstra-se um completo ‘metteur-en-scène’ de todos os aspectos audiovisuais da obra. Daniela da Silva destacou os aspectos pavlovianos dos condicionamentos comportamentais enfrentados pelo personagem-título enquanto Wesley destacou o quanto o filme é positivamente associado ao que seria “uma estética oitentista”, demonstrado que Samuel Fuller foi muito mais bem-sucedido que seu colega Nicholas Ray na lida com as imposições hollywoodianas.
Consultando uma resenha mui entusiástica do crítico Jonathan Rosenbaum – um grande ‘connaisseur’ das cinematografias alternativas e estrangeiras, crítico bastante elogiado por Caio Amado, mas que, infelizmente, foi pouco traduzido no Brasil – verifica-se que, apesar de servir-se muito bem de estratagemas cinematográficos que poderiam render bons números de bilheteria, o filme foi lançado em pouquíssimas salas, quando de sua estréia, e, até o início da década de 1990, sequer havia sido lançado em vídeo. Por conta disso, o filme é tão subestimado entre os demais trabalhos do diretor, não obstante a defesa ardorosa do crítico, que, num rompante de genialidade analítica, afirma que, “[Samuel] Fuller jamais nos deixa esquecer que são os humanos, não os animais, que estão sendo questionados. Assim como nas fábulas de Esôpo e La Fontaine, o herói da parábola fulleriana até pode ser um cachorro, mas o assunto é a raça humana”.
Obviamente, ao longo do debate foram trazidos à tona questões e problemas tipicamente encontrados em filmes protagonizados por animais: no caso em pauta, um dos maiores méritos foi a não-transformação do cachorro em figura antropomorfizada, mas sim respeitado em sua essência canina e instintiva, ainda que uma seqüência em particular tenha incomodado Manoela Veloso Passos em sentido contrário. Impossível ficar emocionalmente incólume às chagas eminentemente humanas que são depositadas sobre o cachorro, portanto, que desembocam em questionamentos elementares sintetizados por Jonathan Rosenbaum a partir do que o filme mostra: “é possível remover o ódio do mundo? Se o racismo é uma forma de ódio condicionado, é possível erradicá-lo através do recondicionamento? O recondicionamento em si mesmo não impõe um tipo de violência que ameaça a sanidade e o equilíbrio emocional?”.

domingo, 14 de junho de 2015

RELATÓRIO 58

RELATÓRIO 58

RELATORIA DA REUNIÃO ORDINÁRIA DE 13 DE JUNHO DE 2015: “Quanto menos importante o tema de um filme, menos sua forma acarreta uma dimensão moral. E, desse ponto de vista, a eficácia, a nitidez plástica e a violência lírica, características do estilo de Samuel Fuller, preservam seus filmes do sentimentalismo ou da ambição do filme de tese, chagas do cinema ‘legitimado’”.
O diagnóstico acima é sintetizado por Antoine de Baecque, quando rememora a descoberta empolgada dos petardos fullerianos pelos “jovens turcos” da revista Cahiers du Cinéma. E, não por acaso, tal testemunho aplica-se muito bem à verdadeira experiência litúrgica que foi a sessão conjunta de O BEIJO AMARGO (1964, de Samuel Fuller), que deixou os cecinéfilos absolutamente atordoados com a sua genialidade e caráter subversivo.
Após consentir, extasiado, que esta é a obra-prima máxima da filmografia fulleriana, o mentor Caio Amado conduziu o debate a partir de algumas comparações elementares: segundo ele, o “filme de vingança” A LEI DOS MARGINAIS (1961) seria o antípoda ideal desta obra, em termos morais, enquanto a mesma é quase um complemento discursivo de DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957). Se, no cinema rayniano, que estudamos anteriormente, o que mais interessava ao diretor eram os personagens frágeis, em Samuel Fuller, os personagens fortes se sobressaem. Neste sentido, a interpretação de Constance Towers é pura entrega, puro vigor, um extremo ‘tour de force’...
Complementando a sua participação no ótimo filme anterior PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963) – que é alinhavado dialogisticamente na genial explicação do título original (“o beijo nu”) – a personagem de Constance Towers alega que, da outra vez em que experimentara tal ósculo, seu perpetrador fora internado num hospício. O modo como as perversões eróticas e sociais surgem no roteiro deixou todos impressionados. Mauro Luciano, inclusive, foi taxativo: “um filme como estes jamais seria feito hoje em dia!”. Com certeza, as punções incisivas de Samuel Fuller acerca da hipocrisia estadunidense seriam ostensivamente refutadas hodiernamente, sendo a sua condição marginal nas cercanias de Hollywood acentuada não apenas pela ousadia de suas tramas acentuadamente autobiográficas, mas também por sua autoralidade inegável (além de dirigir, ele escrevia e produzia seus filmes), que o obrigava a submeter-se a algumas condições produtivas elementares, como a escolha de elencos pouco conhecidos, ainda que magistralmente competentes.
A pletora funcional de personagens nas tramas fullerianas e a sua insistência emuladora dos processos de investigação jornalística também foram debatidas, bem como a importância do filme no processo de “abertura” em relação à autocensura hollywoodiana que estava em voga na primeira metade da década de 1960, em que o cineasta Otto Preminger (1905-1986) fora outro dos principais contribuintes.
Tergiversando sobre a proposital mistura de gêneros do filme, Wesley Pereira de Castro e os demais surpreenderam-se com o sobejo de ternura advindo de um cineasta tão macho e vinculado à abordagem sem pudores da violência humana. O tom quase melodramático que o enredo assume nalguns aspectos levou alguns dos espectadores às lágrimas, principalmente no surpreendente e emocionante momento em que um coral de crianças deficientes entoa “The Blue Bird of Happiness”. Sem mencionar o espanto e empolgação que tomaram conta da platéia diante da estrondosa seqüência de abertura, que Daniela da Silva descreveu como “extremamente tensa” e que Jadson Teles alinhavou com influências godardianas, principalmente no que tange ao uso intermitente do som e às variações bruscas na trilha musical. Uma obra-prima sob todos os aspectos, portanto!

RELATÓRIO 57

RELATÓRIO 57

RELATORIA DA REUNIÃO ORDINÁRIA DE 06 DE JUNHO DE 2015: No afã por verificarmos “como um cineasta vigoroso consegue incisar, com uma ironia feroz, algumas chagas da nossa civilização” (palavras do pesquisador Claude Beylie), vimos, nesta última reunião, aquele que talvez seja o maior petardo do genial Samuel Fuller (1912-1997): PAIXÕES QUE ALUCINAM (1963), obra fortíssima, que impacta terminantemente quem fica sob o seu jugo espectatorial.
Não obstante o baixo quórum nesta tarde chuvosa, os cecinéfilos presentes deslumbraram-se com uma denúncia intensificada contra algumas das mazelas mais insistentes da sociedade norte-americana: a intolerância (personificada aqui pelo anticomunismo); o segregacionismo; e a corrida armamentista, bem como os desvios éticos da ciência atômica. Diante de seu fervor enredístico, o diretor não hesita em parecer inverossímil nalgumas seqüências, quando o que lhe interessa é o extrato bruto de um puro cinema. Segundo o pesquisador supracitado, este filme é o corolário de “seu temperamento caloroso, explosivo, de seu estilo todo feito de fulgurações barrocas e de síncopes visuais, e de seu humor também, sarcástico até o delírio”.
Não obstante, ao final da revisão, Wesley Pereira de Castro ter desapreciado a interpretação exagerada do protagonista Peter Breck, foi consenso entre os demais partícipes da reunião que todos os arroubos actanciais do mesmo foram propositais, no intuito de atingir os efeitos propostos pelo cineasta, que “sempre faz cinema com lança-chamas: cada seqüência é como que uma praça-forte a ser atacada, um terreno a ser neutralizado”. Neste sentido, o uso das cores em algumas lembranças traumáticas (e/ou quiçá redentoras e atreladas a lampejos de sanidade) abalou profundamente os sentidos dos presentes, sobretudo de Victor Cardozo, que via o filme pela primeira vez.
Enquanto comparava o filme com outras produções fullerianas, o mentor Caio Amado ressaltou a pujança da crítica ao jornalismo sensacionalista perpetrada pelo roteiro, crítica esta que Wesley rebate pelo senso de voluntarismo dos repórteres, o que fez com que Jadson Teles trouxesse à tona uma oposição entre a culpa endógena e a exógena, que diferenciam os estilos de Nicholas Ray e Samuel Fuller, para além de suas similaridades produtivas e subestimações em Hollywood. Traços autobiográficos do diretor, inseridos em cada uma de suas obras, também foram exortados, com destaque para excertos de outros filmes (inclusive um inacabado) e aptidões profissionais que lhe conferiram uma especialidade inata no alicerce arquetípico da violência estadunidense. Por isso, o caráter de ‘mcguffin’ da trama de assassinato investigada pelo protagonista soa tão circunstancial e, ao mesmo tempo, tão percuciente. Sem constar que a suma sensualidade do filme deve ter sido escandalosa à época, tendo influenciado, com certeza, alguns aspectos do cinema de David Lynch!
Para a semana que vem, seguiremos com outro grande clássico deste insigne transcendedor do cinema B, O BEIJO AMARGO (1964). Um debate mui intenso estará assegurado, com certeza! (WPC>)

RELATÓRIO 56

RELATÓRIO 56

RELATORIA DA REUNIÃO ORDINÁRIA DE 30 DE MAIO DE 2015: “Um filme é um campo de batalha: há amor, ódio, ação, violência, morte... Numa palavra: emoção!”.
Com este célebre apanágio, pronunciado pelo próprio Samuel Fuller (1911-1997) em O DEMÔNIO DAS ONZE HORAS (1965, de Jean-Luc Godard), iniciamos a reunião deste sábado. Terminada a maratona Nicholas Ray, iniciaremos agora, ainda dando continuidade aos cineastas que, segundo Gilles Deleuze, dão vazão à imagem-pulsão, uma análise cuidadosa da filmografia irregular porém genial do também marginal Samuel Fuller.
Conforme foi sintetizado por Wesley Pereira de Castro, numa espécie de apresentação do cineasta, antes da sessão propriamente dita, o fato de o diretor ter sido jornalista e ter sido soldado interferiam drasticamente em seu estilo de filmar. Como afirma sobre ele o pesquisador Jean Tulard, “seus filmes não se perdem em digressões, vão direto ao assunto”. Reiterando a sua concatenação jornalística, o pressuposto da objetividade narrativa penetraria o modo de conduzir seus filmes, geralmente sobre temas duros e atravessados pela violência, o que explica a sua predileção por gêneros (que ele subverte) como o policial, o filme de guerra e o faroeste.
Uma de suas obras canônicas, pertencentes a este último gênero, foi visto em grupo: DRAGÕES DA VIOLÊNCIA (1957), num direcionamento que pretendia dialogar diretamente com o debate sobre feminismo e subtextos políticos que marcou a discussão sobre JOHNNY GUITAR (1954, de Nicholas Ray). Inclusive, num cotejo com a obra rayniana, o mentor Caio Amado antecipou que, se nesta, os personagens perseguidos pelas instituições típicas estadunidenses realmente apresentam a presunção da inocência, nos filmes fullerianos, a culpa é evidente, os personagens são responsabilizados diretamente por seus atos.
Na análise imediata sobre DRAGÕES DA VIOLÊNCIA, portanto, Mauro Luciano deu o pontapé inicial sobre o que tachou de “questão étnica”, visto que identificara uma oposição entre mestiços (italianos, indígenas, etc.) e continuadores do domínio britânico nos EUA. Caio, inicialmente, entendera o adjetivo “ético”, a partir do qual Wesley se serviu para expor a sua interpretação do filme, que se somava às questões erigidoras de obras-primas como PAIXÃO DOS FORTES (1946) e O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA (1961), ambas de John Ford, e o clássico ainda insuficientemente divulgado O MATADOR (1950, de Henry King), verdadeiro pilar do chamado “faroeste psicológico”. Em todos os filmes mencionados, o traço comum é o embate entre o impulso democratizante e a lógica selvagem do Velho Oeste, numa lógica que defende a promulgação democrática.
Manoela Veloso Passos, por sua vez, utiliza-se de diálogos específicos dos personagens para trazer à tona as diferentes motivações passionais para o perdão, visto que, em sua fala, a personagem de Barbara Stanwyck consegue fazê-lo após a perda de todas as suas posses, ao passo que o agente federal (e pistoleiro regenerado) vivido por Barry Sullivan é interdito por limitações pessoais. Wesley aproveitou o ensejo para, mais uma vez, comparar a trama do filme, bem como suas reverberações discursivas, com a saga verídica do célebre xerife Wyatt Earp (1848-1929), visto que a cidade de Tombstone (“cemitério”) é o cenário de ambos.
Prosseguindo com a análise, os cecinéfilos debateram as suas impressões sobre as perspectivas morais comuns aos filmes de faroeste, expuseram as suas percepções gerais sobre o estilo fulleriano (as elipses súbitas, o Cinemascope subvertido, as “notícias” abundantes em cartazes aparentemente banais, etc.) e elucubraram demoradamente sobre as razões sentimentais e/ou impetuosas que justificam as atitudes dos personagens, e que são brilhantemente metonimzadas na seqüência antológica do ciclone, que precede um intercurso sexual entre os protagonistas, até então em lados opostos da Lei.
Não obstante ser o diretor, produtor e roteirista de seu filme, Samuel Fuller foi obrigado a realizar algumas concessões enredísticas e modificar o desfecho que programara para o seu filme, que seria muito mais severo do que aquele que aparece em tela. Apesar disso, o modo como se dá a “reconciliação” entre os antagonistas românticos fez com que Caio demonstrasse que o filme, em sua aparente adequação às convenções do faroeste, na verdade, reproduzia características arquetípicas do ‘noir’, a ponto de Mauro destacar inclusive o sotaque citadino (mais precisamente, nova-iorquino) de alguns coadjuvantes. Como não poderia deixar de ser, a devoção de Martin Scorsese pela obra foi evidenciada!

RELATÓRIO 55

RELATÓRIO 55

RELATORIA DA REUNIÃO ORDINÁRIA DE 23 DE MAIO DE 2015: neste sábado, a reunião ordinária apresentou um fluxo diferente: sentados em círculo, cada um dos cecicinéfilos apresentou as suas impressões pessoais acerca da filmografia inaudita de Nicholas Ray (1911-1979). O mentor Caio Amado, inclusive, sugeriu que cada um redigisse um pequeno texto, a fim de que publicássemos em nosso ‘blog’ uma antologia de artigos sobre o brilhantismo deste cineasta tipicamente norte-americano, que afetou intimamente os seus audientes.
Levando a cabo o seu plano, Caio Amado pediu que fosse lido o seu texto poético e deveras analítico, em que expunha os traços comuns às obras raynianas, destacando as relações inatas entre a culpabilidade e a injustiça das relações sociais, que perseguem os casais protagonistas. A inadequação dos mesmos a contexto bem delimitados que, não obstante, escondem bases hipócritas foi enfaticamente mencionada, bem como a maneira como o cineasta lidou com os estereótipos de outras culturas (cigana, esquimó e chinesa) nalguns de seus derradeiros filmes.
Mais uma vez, a definição certeira de Mauro Luciano acerca dos substratos filosóficos e políticos da filmografia de Nicholas Ray foi referendada, de maneira que, cada qual a seu modo e de acordo com seus interesses pessoais, Victor Cardozo, Daniela da Silva, Lucas Barbosa Carvalho e Wesley Pereira de Castro expuseram seqüências de filmes que muito lhes marcaram, de maneira que as mesmas constarão de seus respectivos textos, a serem reunidos em breve.
As cores fortes, os seus enquadramentos rígidos, as suas críticas ao conservadorismo institucional estadunidense, as suas revoluções formais (que induziram comparações com os demais cineastas hollywoodianos da época), todos estes aspectos foram mencionados, e são aqui obliterados porque constarão dos respectivos relatos cecinéfilos, que, conforme já foi dito, serão publicados a posteriori. Vale acrescentar que, em conversa demorada, concordamos que a década de 1950 foi a “era de ouro do cinema hollywoodiano”, em que os melhores diretores radicados nos EUA realizaram as suas obras-primas.